Pessoas que queimam livros
Aquilo que tenho a dizer vem no seguimento de algumas notícias que, nos últimos dias e últimas semanas têm vindo importadas do século XIX.
Há alguns dias li que padres na Polónia queimaram publicamente livros do Harry Potter porque eram um incentivo à prática de magia negra. Hoje li que numa escola em Barcelona retiraram uma série de livros infantis e contos de fadas do catálogo de uma escola porque eram "tóxicos" para as crianças.
Não sei quanto a vós, mas a mim apetece-me gritar. O que se está a passar com o cérebro do ser humano? Será que se está a tornar intolerante às metáforas, na porporção em que o resto do corpo se torna intolerante ao glúten e à lactose?
"Ai, c'horror! Uma história onde uma menina vai pela floresta levar bolinhos à avó e um lobo falante a aborda! Não posso mostrar isto ao meu filho, vamos que ele faz o mesmo! Tenho de o proteger!"
Mas, ao mesmo tempo, cria-se no mundo uma estirpe de agentes paternantes que decidem não vacinar as crianças. Tudo bem.
Alguém que avise estas criaturas que, ao mesmo tempo que podem, e devem, ler estas coisas às crianças, devem também explicar que existe uma moral nesta história: que não devem andar sozinhos em lugares escondidos e muito menos falar com os estranhos que lá encontrem.
Estas histórias são a base da educação das crianças há uma série de gerações, e não somos todos psicopatas, ok? Vamos lá abrandar e dar algum crédito aos irmãos Grimm.
Também não há muito tempo no nosso país houve uma polémica semelhante, mas com uns versos de Álvaro de Campos que uma editora decidiu censurar, porque referia meninas a masturbar homens de aspeto decente em vãos de escadas. Censura moderna ultra-moralista e muito interessante, a meu ver, num país onde o herói nacional é um jogador da bola que se viu envolvido num escândalo sexual do qual nunca mais se ouviu falar, e onde a alegada vítima foi, logo à partida, descredibilizada. O que me leva a levantar uma questão: quando censuramos, em Portugal, estes versos, queremos proteger as meninas, ou os homens de aspeto decente?
Resumindo e baralhando: não faz sentido falarmos de censura nos livros no tempo em que vivemos. Está certo que a memória coletiva é curta, mas é assim que se abrem as portas a governos totalitários e com ditadores à cabeça. Como é que os evitamos? Lendo. Lendo livros de todos os tipos. Leiam a "Lolita", que tem pedofilia, mas ensinem as pessoas que isso é mau. Leiam Camões, mas ensinem as pessoas que, por muito bom que seja, já ninguém precisa de escrever em versos decassilábicos para ser considerado talentoso. Leiam Margarida Rebelo Pinto, mas ensinem às pessoas que há melhor. Mas leiam.
Quem acha muito bem que esta censura seja feita, pode começar pelos manuais de História do 3º ciclo.
Um kiss e um cheese.